domingo, junho 17

Poema . 1



É raro no dia-a-dia termos noção do que é realmente importante. Tomamos certas coisas que nos definem como garantidas e só quando nos vemos abandonados por elas é que lhes damos valor. Vamos lembrar hoje uma delas, quiçá a mais importante, e sem motivo só por lembrar. O primeiro poema de muitos...


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados,
fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamos os amigos mais íntimos
com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
"Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se
em nuvem
hoje às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente,
com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia,
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho,
sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida,
os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer,
começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?)
— nesta tarde de Outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis…

de... José Gomes Ferreira


para Fujiko

2 comentários:

Sea Spirit disse...

Profundo!
O adamastor anda mt sentimental...deixou as tormentas por momentos??

Mas mt bonito!

O Adamastor disse...

Anda não anda :D

Mas esta teve patrocínio. Mais se seguirão.